O MAR É UM LUGAR MÁGICO

  O mar tem uma mágica que pode ser sentida mesmo por quem não tem intimidade com ele, basta estar próximo que podemos sentir sua força de alguma forma.

Mesmo à certa distância, sentimos seu cheiro, sua umidade e podemos ouvir seu som, tranquilo e potente. 

Olhando para ele durante dias de inquietude fico imaginando se sou páreo para tamanho desafio de navegar por tanto tempo sobre as águas salgadas e sem fim. O medo é do mesmo tamanho do desejo por fazê-lo e por isso creio que a desistência não soa como uma opção, mas o preparo e o conhecimento se tornam fundamentais. 

Mas estar perto do mar faz acender as emoções e revive os desejos que o dia a dia nos faz colocar num lugar onde não é prioridade. Por isso estar perto é tão importante, se é o que se pode fazer ao menos isso deve ser feito. 

A fé em continuar e o desejo têm que permanecer vivos, é o mínimo que se precisa para realizar os sonhos.

NO MEIO DA MADRUGADA

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Na última semana da vela eu estava hospedado no veleiro Petit Prince, no Iate Clube de Ilhabela.

Aportados à um resistente cais flutuante de concreto e ferro, amarrados com quatro cabos (duas espias e dois springs) pensavamos estar seguros, mas na madrugada de sábado para domingo entrou derrepente um vento sul no canal da ilha de cerca de 50 nós (94km/h) e arrebentou nossas amarras, tamanha sua força. Veleiros começaram a se bater devido ao vento e as ondas, acordamos com os barulhos que vinham de toda parte, quando eu me levantei, o Paulo ja estava no convés ligando o motor para empulsinar o barco contra o vento e ao redor parecia o fim do mundo. Barcos desgovernados passavam por fora do anel do cais, perdidos de suas âncoras e tantos outros tripulados se escondiam atrás de enormes petroleiros para não sofrer a ação do vento. Com o rádio ligado no canal de comunicação do Iate Clube Ilha Bela ouviamos diversos pedidos de ajuda e impotentes, respondiamos que nada poderiamos fazer para ajuda-los e os aconselhavamos que se escondessem atrás dos petroleiros. Após 30 minutos de tormenta vimos a enorme embarcação da Marinha, que participa dos festejos da regata, dirigir-se no sentido dos barcos que pediam socorro e isso nos deu um alívio. À nós, restava cuidar do nosso próprio problema, tinhamos que nos amarrar novamente ao cais e ao nosso redor haviam algumas dezenas de veleiros. Com motor a frente e sem sair do lugar, depois de 40 minutos de luta, conseguimos nos amarrar com quatro espias na proa, ou seja, quatro cabos no mesmo sentido para frente, afim de manter o barco alinhado com o vento e as ondas, diminuindo assim o perfil do veleiro cotra suas forças. Ao nosso lado uma lancha não teve tanta sorte, golpeada com onda atrás de onda, acabou por afundar. Tentamos socorrer a lancha, mas devido ao nosso apuro, quando nos demos conta a embarcação ja tinha afundado sem tripulação, isso se deu em questão de minutos e foi uma terrivel surpresa. Em um instante ela estava ali agonizando e no outro ela tinha desaparecido, nem a vimos afundar mas viamos suas amarras ainda no cais.

Depois disso nos restava dormir, mas quem iria conseguir dormir depois daquela dose de adrenalina tremenda e o medo de uma nova surpresa? No final das contas acabei ficando sozinho no barco, o Paulo tinha pulado na água para alcançar o cais e la ele fez as amarras enquanto eu  fazia o mesmo no veleiro e depois de feito, ele achou mais seguro dormir no salão do Iate Clube, o que me fez um tripulante mais assustado afinal, sozinho era melhor que nada mais desse errado e também por isso não consegui mais dormir, apenas fiquei deitado com o rádio ligado por mais um tempo ouvindo os pedidos de ajuda e os relatos de ventos nos medidores dos barcos em mar “Estou registrando 48 nós de vento e nas rajadas chegam a quase 60″ afirmou um velejador em mar.

Cais de concreto um dia antes da tempestade fotografado por Paulo Vinicius Arruda Passos

No dia seguinte, com muito sol e muito vento seguimos para o Bracuhy em Angra dos Reis, fizemos o trajeto em 11 horas com vento de popa de 20 a 25 nós, três velas abertas e muitas ondas que pareciam paredes de água atrás de nós,  ja que estavamos no mesmo sentidos delas, foi o dia de vela mais trabalhoso que ja tive, mas foi um velejo para guardar na memória.

Um corpo em movimento

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Foto de travessia Ilhabela-Bracuhy no veleiro Petit Prince

Estávamos eu, três primos e meu tio a bordo do veleiro Domani, navegando rumo à Parati próximo à costa cerca de duas milhas náuticas (quatro quilômetros) e com tempo fechado.
Todos estavam no cockpit, de onde se controla o barco de todas as maneiras, leme, velas e motor, até que começou a chover e para minha sorte, era minha vez no leme e todos desceram para a cabine. Sempre fazíamos turnos no comando do barco, principalmente durante a noite, quando nos revezávamos a cada quatro horas em duplas, para evitar que uma pessoa sozinha ficasse com sono, então havia muita conversa para que não dormíssemos e o barco ficasse sem governo. Mas naquele momento ninguém estava dormindo, era perto de meio dia e eu estava no leme só, assistindo pela entrada da cabine à minha frente o povo todo se deliciando de miojos. A princípio fiquei furioso com as provocações e brincadeiras, mas me concentrei no que estava fazendo, pois quando chove a visibilidade se reduz muito, as vezes a poucos metros a frente. Nesse momento em que me entreguei ao comando do barco e a situação, comecei a sentir que estava me conectando e me veio uma tranquilidade incrível, a chuva parou de incomodar, a fome que nem era tanta foi esquecida e eu comecei a admirar aquele momento que era só meu, como se eu estivesse sozinho comandando aquele enorme veleiro por dentro da chuva sem ver terra a vista, tendo como direção um número a ser lido na bússola a minha frente. A posição em que eu me encontrava favoreceu esse sentimento também, como este veleiro tinha roda de leme, era possível e mais prático conduzi-lo em pé, me dando a sensação de ser um passageiro com as mãos apoiadas no timão, apreciando as particularidades do mar recebendo a chuva como em um camarote especial.
As vezes é difícil entrar em contato com o que está ao nosso redor, muitas coisas nos chamam a atenção e raramente são as coisas importantes, essas geralmente passam sem percebermos. A vida deveria ser um caminho repleto de sentimentos e nós os banalizamos e esquecemos, mas no fim das contas, é isso que importa de verdade.
Se não nos importarmos de sentir o que nos rodeia, seremos capazes de interagir de alguma forma, assim como naquela situação, em cada lugar que vamos existe esta possibilidade e é disso que se forma um corpo vivo, que está em constante transformação e sempre transformando onde passa.

No final uma tempestade

Estávamos chegando de uma longa viagem a bordo do veleiro Domani, um oceânico de 40 pés, havíamos navegado pela costa de São Paulo e Rio por cerca de 15 dias com ventos tranquilos e mar calmo no caminho de ida e volta, saindo de Ilha Bela rumo à Paraty chegando em Ilha Bela novamente. Faltavam por volta de 10 milhas náuticas (18 km) para entrarmos no canal de São Sebastião, estávamos com mar alto mas nada assustador, de repente o vento começou a aumentar e a tripulação toda, eu, meu tio e três primos, ficamos empolgadíssimos com a velejada, tanto que nem notamos muito as ondas que se mostravam cada vez maiores. Era noite já, aproximadamente oito horas, e não havia céu claro, ou seja, um breu e o casco de mais de dez toneladas abrindo ondas com uma potência impressionante e um estrondo de trovão. No meio dessa empolgação toda o vento que entrava no través de bombordo (esquerda), portanto do oceano para a terra já que íamos no sentido sul, se transformou em um potente desafiador e travou a vela grande com uma força que três homens não conseguiram soltar a escota, que chegou a quebrar o mordedor. Tamanha força adernou o enorme veleiro em um ângulo que o leme perdeu a eficiência por tocar pouco a água. Essa mesma força e ângulo impedia que o veleiro seguisse em frente, ou seja estávamos estancados a mercê das ondas e não bastando, a genoa que conseguíramos enrolar, tinha ficado com uma barriga e foi o suficiente para inflar uma parte de vela, correndo o risco de rasgar. Era uma situação que eu nunca havia enfrentado, dentro de um veleiro, sem nenhum visual da costa, tempo fechado e andando nas paredes do barco. Ironicamente estávamos entre uma e duas horas de chegar no abrigo do canal. Apesar da situação extremamente perigosa, não havia nenhum desespero a bordo, correria sim, mas não desespero, tudo era feito de forma pensada e sensata por todos os tripulantes, como se tivesse sido combinado antes. Depois de 10 ou 15 minutos de luta eu e meu primo conseguimos risar a vela (procedimento padrão em casos de tempestade, consiste em diminuir a área da vela baixando-a até uma altura que a vela tem uns “furinhos” para passar um cabo de amarra) e o veleiro voltou ao nosso comando, porém ainda estávamos bem adernados e no meio de uma tempestade, a carta náutica indicava que um abrigo na costa norte de Ilha Bela não estava longe e rumamos para lá, o Saco do Poço. Conforme nos aproximamos da ilha, entramos na sombra das montanhas e o vento ficou mais calmo e pudemos relaxar. Foi uma aventura incrível e uma grande diversão que ficou na memória, não pelo perigo que passamos mas pelo sucesso que tivemos. Creio que tudo que se faz depende de estarmos conectados, nosso triunfo não está relacionado a sorte, mas sim à profunda comunicação que tínhamos com a situação e o meio. Esta conexão nos possibilitou participar do meio, fazer parte da situação e não lutar contra ela, porque se não estivéssemos conectados com o meio, provavelmente não estaríamos conectados entre nós e uma catástrofe seria inevitável.